terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Os Meninos de Quatro Pinheiros

Chácara de Mandirituba abriga garotos que passaram pela dor do abandono e perigo das ruas


O petit pavé fazia a vez do colchão e um papelão úmido cobria o menino descalço e aos farrapos. A alimentação vinha da boca do lixo e a infância se ia como um mendigo que atravessa. Não foi fácil sentir na pele um mundo obscuro de abandono e tristeza. Mas, Fernando de Góis, ex-frade carmelita, passou por tudo isso e não deixou barato. Criou a Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros, em Mandirituba, onde 80 ex-meninos em situação de rua experimentaram a vida como ela deve ser. A casa é um modelo reconhecido internacionalmente e, ano passado, foi apontada pela Unesco como uma das 50 iniciativas latino-americanas mais importantes no atendimento à criança e adolescência.

A instituição é composta por cinco casas, nas quais os meninos vivem conforme a faixa etária e a maturidade. Antes de chegarem à instituição, as crianças são abordadas por integrantes dos conselhos tutelares e das varas de infância e juventude. Já na chácara são acompanhadas integralmente por uma equipe de 18 educadores. Os meninos estudam meio período e contam com um leque de atividades como informática, inglês, artesanato e hip-hop. Mas o que conta mesmo no processo de desenvolvimento é o empenho e o carinho dos educadores.

Um deles é José Carlos Gonçalves da Luz. Educador da quarta casa, ele atua diretamente junto a 17 pequenos de 6 a 12 anos."Eu trabalho há oito anos na chácara. Já fui menino de rua e estou retribuindo o que o Fernando fez por mim", diz. José é o pai de mentirinha da piazada. Ele faz o acompanhamento escolar, cuida dos horários das refeições, das tarefas, do banho e das brincadeiras.

Se José é o "paizão", quem faz o papel de mãe é a cozinheira Derli Cardoso, ou "tia Derli", como é conhecida entre as crianças. Ela é referência materna para J., um menino de 9 anos, magrinho e sorriso banguela. "Um dia ele pediu pra eu dormir aqui. Puxou as cobertas e disse pra eu deitar ao lado dele como a mãe fazia", diz. Dona Derli é catarinense e só de pensar em voltar para sua terra, deixando os meninos, enche os olhos de lágrimas.

Na casa dos guris, as histórias de vida são tão tristes quanto surpreendentes. São histórias como a de G., um menino de 12 anos cujo sonho é ser professor de dança. Morador da chácara desde 2004, G. é o único dos meninos que diz não gostar do lar onde vive. "Aqui tem muita briga", reclama.

No entanto, ele dá dicas de que a vida que tinha antes do abrigo não era nem de longe tranquila. "Eu e meus irmãos íamos escondidos pro Centro pedir esmola", revela. Quando perguntado sobre o pai, G. diz sem rodeios: "Está preso, bateu nos guardas". G. tem outros quatro irmãos na casa e a mãe posa com eles de vez em quando.

M. de 9 anos, quer ser eletricista. Monta radinhos e, segundo seu amigo R., quase explodiu a casa ao ligar uma fonte. Antes de ir morar na chácara, em janeiro de 2005, vivia com a tia, na Vila Torres, a ocupação mais antiga de Curitiba. Lá é mais favela, lá tem gente que fuma, tipo a minha mãe", conta o menino, com certa revolta. Mas de rebelde ele não tem nada: é daquelas crianças que despertam afeto instantâneo.

D. está com 13 anos e vive na casa desde 2003 Mesmo tão novo, já é um velho conhecido do abandono. Morou na rua por um ano, com um amigo. A família vive em Almirante Tamandaré e sobre seus pais parece saber pouco. Tem seis irmãos, sendo que o mais velho está atrás das grades. "Ele ficava roubando e prenderam ele", conta D. Seu sonho? Assim como 99% dos meninos da casa, quer ser jogador de futebol. O sonho, aliás, é o que fortalece a luta dos meninos de Quatro Pinheiros, meninos que, como quaisquer outros, também têm o direito de sonhar.

Nós também amamos a vida...

Para vocês a vida é bela
Para nós, favela
Para vocês, escola
Para nós pedir esmola
Para vocês carro do ano
Para nós resto de pano
Para vocês ir à lua
Para nós morar na rua
Para vocês Coca-Cola
Para nós cheirar cola
Para vocês avião
Para nós camburão
Para vocês academia
Para nós delegacia
Para vocês piscina
Para nós chacina
Para vocês apartamento
Para nós acampamento
Para vocês imobiliária
Para nós reforma agrária
Para vocês compaixão
Para nós organização
Para vocês tá bom felicidade
Para nós, igualdade.

(Poesia escrita pelos meninos da Chácara de Quatro Pinheiros.)



Filho que não foge à luta

Fernando de Góis não nasceu em berço de ouro. Seus pais eram humildes e sem terra. Na ocasião da boa nova, talvez de um anjo desses que tocam trombeta tenha anunciado: Vai, Fernando, fazer o bem! E foi o que ele fez. Sua trajetória teve início no Nordeste. Lá deparou-se com uma realidade assustadora - crianças subnutridas em pele e osso. Constatou que muitos brasileiros precisavam de ajuda.

De frade carmelita falador, virou um daqueles caras que levam o Evangelho às últimas conseqüências. Abandonou o conforto da Igreja, parou de criticar o governo e colocou a mão na massa. "Cheguei à conclusão de que eu poderia abraçar uma causa", diz.

No início dos anos 80, veio morar em Curitiba. Por opção, seu lar passou a ser a favela Vila Lindóia, na Zona Sul da capital. "Fui para essa favela para conviver com a violência, as drogas, os maus-tratos, com a fome e a miséria. Esta experiência foi uma grande escola", diz. Ele aprendeu a viver com o necessário e com o improviso. Seguidor do método Paulo Freire, conheceu a realidade da população e se propôs a construir um projeto de vida com ela.

A presença de Fernando de Góis transformou a Vila Lindóia em Comunidade Profeta Elias. O educador de rua - função que abraçou - delimitou sua área de atuação: crianças e adolescentes em situação de risco. "Se a gente investe na criança e no adolescente pode-se garantir um futuro pra eles. Só que para colher este futuro precisa semear o presente", ensina.

A comunidade começou a partir da reunião de crianças no contraturno escolar. Fernando e seus seguidores começaram a desenvolver atividades pedagógicas como o acompanhamento escolar, oficinas de música e aulas de teatro. Depois de oito anos de suor, a Comunidade Profeta Elias estava estruturada. Mas Fernando ainda não estava satisfeito. A nova missão era retirar os meninos da rua.

Ele e os demais educadores enfrentavam as madrugadas frias no Centro de Curitiba em busca de meninos. Era uma luta do bem contra o mal. "Na rua eu fui preso e ameaçado de morte. Contrariar o sistema incomoda as autoridades", admite. Fernando lembra que uma vez viu um policial quebrando o braço de um menino. Não pensou duas vezes: foi até a delegacia e denunciou. A esperança é pouca e os maus tratos são frequentes para os moradores de rua. Fernando conta que alguns meninos já foram queimados com água quente jogada pela janela dos prédios.

O trabalho feito na rua fez com que Fernando estabelecesse com os meninos um vínculo de muito diálogo. Numa conversa, eles decidiram que o melhor lugar para ficar não era na Comunidade Profeta Elias, mas em uma chácara. "Na leitura dos meninos era preciso um espaço em que eles pudessem resgatar as origens do campo, conviver com o meio ambiente e com os animais e ficar distante das drogas", lembra.

Em 1991, Fernando deu um jeito de realizar o desejo dos meninos. Conseguiu comprar uma chácara em Mandirituba e construiu quatro casas. Hoje ele realiza um trabalho de recuperação da dignidade e cidadania dos meninos.

Guerra dos Meninos

- Segundo dados da Fundação de Ação Social (FAS), dos 1028 moradores em situação de rua atendidos pela fundação, 273 têm entre 7 e 17 anos. Desses, 155 são de Curitiba, 85 da região metropolitana e 26 dos demais municípios. A maioria deles (154) têm entre 15 e 17 anos.

- Os meninos resgatados são encaminhados para a cidade de origem, onde são incluídos em programas de reintegração social. O maior problema, no entanto, é que grande parte dos resgatados retorna às ruas, muitas vezes em busca de drogas. O índice em relação uso de substâncias químicas é espantoso: 163 crianças confirmam o uso de drogas.

- A baixa escolaridade também é outro ponto crítico: 178 crianças têm o nível primário, 74 têm de 5ª à 8ª série, quatro possuem ensino médio e 15 são alfabetizadas.

- Quanto à situação familiar, a pesquisa constatou que 210 crianças e adolescentes de rua têm alguma referência familiar, enquanto 63 afirmaram não ter referências.

* Texto de autoria de Juliana Fontoura e Priscila Aguiar no Jornal Laboratório Comunicare Ano 11 / número 130 / Julho 2007 / Editoria: Infância e Adolescência. Orientação: José Carlos Fernandes.

Vermelhão


Símbolo de Curitiba, os "expressos" transportam quase 2 milhões de passageiros, mas nem todos estão satisfeitos


Implantado em 1992, o biarticulado foi uma revolução no transporte público de Curitiba. Até chegarem ao modelo atual, engenheiros pensaram em vários sistema de transporte coletivo que pudessem atender a demanda de passageiros da capital. Uma idéia foi o metrô. Veloz e de porte considerável, ele poderia muito bem ser uma opção a mais para a população curitibana. O problema está no custo.

Luiz Filla, gerente de operação do transporte da Urbs, reconhece as desvantagens deste sistema. "O metrô subterrâneo é uma obra muito cara para Curitiba. Seria preciso fazer um financiamento através de bancos internacionais com o apoio da União", explica. Outro empecilho é o fato desse sistema beneficiar apenas uma região da cidade. "Nós preferimos optar por uma Rede Integrada de Transporte que beneficiasse a cidade de Norte a Sul e de Leste a Oeste", conta Filla.

Com o ônibus biarticulado, surgiram também as estações tubo, feitas em nível e adequadas para o embarque e desembarque nos ônibus. Foi uma inovação. Antes desse invento, muitos passageiros eram obrigados a fazer o pagamento da tarifa em locais perigosos e pouco iluminados. A cobrança antecipada também economiza tempo do passageiro e dispensa a presença do cobrador no interior do veículo. O biarticulado passa por 351 estações-tubo, uma a cada 600 metros, em média.

A Linha Expresso liga o Centro aos bairros e fo planejada em um sistema trinário de vias que é composto por uma canaleta exclusiva para o "vermelhão" e duas vias rápidas de tráfego contínuo em sentidos opostos. As canaletas possibilitam o aumento de velocidade média dos coletivos sem prejudicar a segurança dos passageiros.

O biarticulado é o maior ônibus do Brasil - 24 metros de comprimento e capacidade para 270 passageiros. Porém, para conseguir um banco vago em horário de pico é uma missão quase impossível. Andréa Rofino dos Santos mora em Colombo e utiliza a linha Santa Cândida - Capão Raso todos os dias para ir ao trabalho. Ela adora quando o vermelhão está vazio e pode se sentar. "Quando vejo que o ônibus está lotado, nem entro", diz.

A tarifa custa R$2,20 e de acordo com a Urbs este é o preço que mantém o sistema no qual o cidadão pode atravessar a cidade pagando somente uma passagem. Ivanil Andrade pega dois ônibus por dia para ir para o trabalho. Ela diz que o preço da passagem só não seria justo se não existissem as conexões nos terminais. A proposta da tarifa domingueira a R$1, criada para incentivar o lazer do curitibano, fez com que aumentasse em 40% a quantidade de usuários. Uma pesquisa realizada pela Urbs revela que cerca de 1,9 milhão de passageiros são transportados diariamente, com um grau de satisfação de 89% dos usuários.

Muitos passageiros estão satisfeitos com o transporte, com exceção de alguns estudantes. No dia 22 de março foi estipulado pela UNE e UBES o Dia Nacional da Luta pelo Passe Livre em que há manifestações em 18 capitais brasileiras. Uma pesquisa realizada entre os anos de 2004 e 2006 pela Fundação Getúlio Vargas mostra que o gasto com ônibus das famílias que ganham até dois salários mínimos representa quase 11% do orçamento. Nestes três anos, as passagens subiram o dobro da inflação. De acordo com a Urbs se o estudante não paga a passagem, alguém tem que pagar e é inevitável para o Estado bancar esta despesa sozinho.

A segurança no biarticulado é motivo de preocupação para os usuários que fazem grandes trajetos. Uma gravação alerta os passageiros: cuidado com furtos no interior do veículo. Aparecida Rosa do Nascimento, moradora da Fazenda Rio Grande utiliza todos os dias a linha Pinheirinho - Rui Barbosa. Ela diz que não se sente segura no biarticulado. "Vejo todos os dias algum batedor de carteira em ação, mas não posso falar nada. Um dia uma moça começou a gritar quando viu um roubo. O bandido deu um empurrão e disse pra ela aprender a não ser dedo-duro", diz. O problema da segurança também preocupa Andrea Beatriz Rofino. "Eu ando no ônibus agarrada com a bolsa. Já vi uma pessoa sendo assaltada".

* Texto de autoria de Juliana Fontoura e Priscila Aguiar publicado no Jornal Laboratório Comunicare "Vermelho" / Ano 11 / Número 124 / Editoria Cidade / p.4 / Orientação: José Carlos Fernandes.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Esquinas Deselegantes


Sinal de alerta na Curitiba que chega a 1 milhão de veículos

O cruzamento da Avenida Visconde de Guarapuava com a Desembargador Motta talvez não merecesse uma canção de Caetano Veloso, a exemplo da mítica esquina entre a Ipiranga com a Avenida São João citada em "Sampa". Mas está perto disso. O encontro das duas vias é o mais movimentado do Centro de Curitiba, com fluxo de 5,2 mil veículos por hora no horário de pico - por volta das 18 horas, de acordo com dados da Diretran. É um cenário de cidade grande. "Alguma coisa acontece..."

E acontece não só na Visconde. Curitiba se tornou uma cidade de esquinas e ruas perigosas. É a capital brasileira que mais tem veículos - 1 para cada 1,8 habitantes. A soma assusta: até o final do ano, a cidade interiorana perpetuada nos contos de Dalton Trevisan estará perto de um milhão de veículos.

De acordo com dados do BPtran uma média de três a quatro pessoas são atropeladas pro dia no Centro de Curitiba. É o caso da Avenida Marechal Floriano, com 10 quilômetros, que corta o Centro inteiro. Ela é considerada a mais perigosa da cidade, devido ao grande fluxo de carros, ônibus e pedestres.

Este ano, ocorreram 167 acidentes, quase o dobro do ano passado. "Infelizmente, a maior preocupação das pessoas é não levar multa. Eles colocam o cinto de segurança, porque os guardas do BPTran ou da Diretran vão estar de olho", diz Ronivaldo Brito Pires, 2º sargento da Polícia Militar. Ele lamenta o fato da população não se preocupar com a segurança e diz que o cidadão tem medo de perder a carteira ou o bem material, ignorando a morte ou a lesão que um acidente pode causar. "As pessoas devem ter consciência de que o bem maior é a nossa vida", diz.

A utilização do transporte coletivo diminui acidentes banais, como a colisão por traseira ou engavetamento. No entanto, as campanhas defendem que os pedestres devem se conscientizar de que é preciso utilizar a faixa de segurança ao atravessar as vias. Em sete meses, houve 620 atropelamentos em Curitiba - uma média de 88,57 pessoas por mês, que equivale a suas salas de aula. Nas sextas-feiras, até dez pessoas são atropeladas devido ao estresse acumulado do motorista e à desatenção dos pedestres.

A prefeitura de Curitiba busca soluções para o problema do intenso fluxo de veículos no Centro. Um deles é o incentivo ao transporte público. No domingo, o curitibano pode utilizar os ônibus com a tarifa a R$1. Os biarticulados têm capacidade para 270 passageiros. Se fossem mais utilizados, os coletivos contribuiriam para a mobilidade da cidade. Atavessam Curitiba de um lado a outro e permitem várias conexões com o pagamento de apenas uma tarifa.

Na Colômbia, a cidade de Bogotá conseguiu uma solução: construiu 300 quilômetros de ciclovia utilizadas por 350 mil pessoas que vão ao trabalho de bicicleta diariamente. A prefeitura acabou com os congestionamentos e os problemas ambientais.

O pedágio urbano de Londres restringe a circulação de veículos no Centro da cidade e o monitoramento é feito através de câmeras espalhadas em pontos estratégicos. A tarifa custa 5 libras (quase R$25). A medida adotada pela capital inglesa pode ser muito radical para uma cidade como Curitiba, mas o Anel Viário, investimento da prefeitura em parceria com o Estado, trará maior fluidez ao tráfego da cidade.

Trata-se de um binário - dois sentidos de vias, um no horário e outro no anti-horário - que contornará o Centro. De cada cem motoristas, 33 vão para o Centro de acordo com dados da prefeitura. Com este projeto, somente as pessoas que realmente precisam fazer algo na região passarão por ali. Alguma coisa realmente acontece no coração do curitibano, inclusive em Viscondes, Mottas e afins.

* Texto de autoria de Juliana Fontoura e Talita Fioravante no Jornal Laboratório Comunicare "O Centro Vive"/ Ano 10 / Número 118 / Novembro 2006 / p. 10 / Orientação: José Carlos Fernandes.

Ninguém sabe, ninguém viu


Jogo do Bicho resiste à repressão e sua prática acontece na surdina


O Jogo do Bicho era nobre. Seu pai foi o Barão de Drummond e nasceu com um objetivo digno: a manutenção do Jardim Zoológico de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Em 1893, Drummond inaugurou a contravenção penal mais popular do país. Bastava comprar um ingresso de mil réis para o zôo e era possível ganhar 20 mil réis se coincidisse o animal desenhado no bilhete com o que seria sorteado horas depois.

No início, o jogo era considerado uma diversão dos cariocas bem sucedidos. Hoje, a jogatina é para todos os bolsos e deixou para trás o caráter ingênuo. De acordo com Vilson Alves de Toledo, delegado do Centro de Operações Policiais Especiais (Cope) da Polícia Civil, o jogo do bicho é um abuso à credulidade das pessoas e esconde crimes como o tráfico de entorpecentes e a lavagem de dinheiro. Outro problema é que a prática traz prejuízos ao Estado, uma vez que não se recolhe nenhum tipo de tributo.

A polícia civil está com uma campanha de combate ao bingo, jogo do bicho e máquinas caça-níquel. Em 2005, foram agendadas 534 audiências com exploradores de jogos de azar no Juizado Especial Criminal de Curitiba. Neste ano, no período de janeiro a setembro , foram sinalizados mais 312 casos. "É uma infração de pequeno potencial ofensivo que pode acarretar em restrição de direitos e multa", diz Toledo.

À medida que as diligências policiais e estratégicas de combate aumentam, o jogo do bicho se fortalece. Além de ser considerado um dos jogos mais originais do mundo por não exigir material algum, como fichas e baralho, tem o apoio popular. Através de um simples recado verbal, a pessoa pode fazer um jogo de valor pequeno, em três ou quatro minutos, e válido para a semana ou o mês inteiro.

Um dos primeiros bicheiros de Curitiba foi Francisco Serrador, um aventureiro que, em 1850, resolveu montar um quiosque na área onde hoje se encontra a Praça Borges de Macedo. O espaço tinha por finalidade o comércio de cigarros, cachaça, café, balas e fumo em rolo, o que servia de pretexto para a atividade principal: o jogo do bicho.

Naquela época, o jogo era feito no verso das caixinhas de fósforo ou em pequenos pedaços de papel. Hoje as apostas são feitas em aparelhos semelhantes aos de cartões de crédito e emitem um "ticket". Silencioso, o jogo do bicho parece acontecer em uma Curitiba proibida, mas não impedida.

* Texto de autoria de Juliana Fontoura publicado no Jornal Laboratório Comunicare "Curitiba à vista" / Ano 10 / Número 120 / Novembro 2006 / p.6 / Orientação: José Carlos Fernandes

Os meninos da ala D


Eles correm perigo, são protegidos e fazem planos pra depois de amanhã


O Educandário São Francisco tem um sistema de segurança que não difere da maioria dos presídios. Alguns alojamentos são tão escuros e sombrios quanto os modelos de cadeia mais comuns. Os meninos são separados por alas de acordo com a periculosidade do delito. As alas A e B são para os meninos considerados imaturos e que cometeram infrações menos graves.

Na C ficam os garotos que oferecem riscos aos demais pelo porte físico e distúrbios de personalidade. Quanto à ala D, há muito o que dizer: ali estão isolados os garotos jurados de morte, por terem cometido ou participado de infrações não toleradas nos sistemas prisionais em geral, como matricídio, abuso de menores e idosos, ou estupro. A turma da D vive na mira e os coordenadores da unidade que não podem descuidar dos internos um minuto.

Hoje, 20 meninos vivem sob proteção severa na ala D do São Francisco. Para conversar com eles, a equipe do Comunicare teve que fazer tripas coração. Foi preciso comprometimento, coragem e uma boa dose de diálogo com os técnicos do educandário. Acordo feito, três deles se sentaram com as repórteres e falaram sobre suas angústias, medos e principalmente do arrependimento por terem cometido delitos graves, muitos deles irreversíveis.

Os meninos da ala D são considerados perigosos, pois tiveram um contato desmedido com o crime organizado, o que costuma causar transtorno das unidades de ressocialização: as medidas educativas tendem a ser neutralizadas pelas investidas dos criminosos de carteirinha. Combater essas relações perigosas é um dos maiores desafios dos educadores.

Em paralelo ao flerte com o mundo do crime, boa parte desses garotos traz outro histórico - muitos nasceram em famílias desestruturadas e passaram a infância e parte da adolescência na rua. Alguns deles encontraram refúgio nas drogas; outros tinham como 'ganha pão' os assaltos à mão armada. Quase 70% dos 150 meninos do educandário não freqüentavam a escola antes da internação, portanto não tiveram um amadurecimento saudável e a construção de um repertório de valores.

A passagem dos adolescentes pela instituição pode ser uma oportunidade de recuperar a auto estima perdida no asfalto e lutar por uma vida digna. "Nós motivamos os meninos e fazemos com que eles descubram suas qualidades", diz Iliete S. Galloti, tutora e psicóloga responsável pela ala. O tratamento é uma combinação de muito diálogo, oficinas e orientação religiosa, com rigidez dosada por parte dos educadores.

D.M., menino de mãos grandes e surradas, diz que quando fica sabendo do crime do outro pode dar 'atropelo'. Ou seja, uma punição por desrespeitar as regras da cadeia. Ele conta que só descobriu que havia alguma coisa boa em sua personalidade quando 'caiu' na 'escola' (como eles se referem ao educandário). P.C., adolescente com jeito de homem e evidente timidez, lembra que quando chegou à instituição pensava em se matar. Depois das conversas com Iliete, sua cabeça foi mudando e ele pôde escolher entre estar num caixão ou ter uma vida digna.

Confira nesta reportagem fragmentos da conversa com os garotos da ala D. São três perfis que ajudam a conhecer a vida no educandário. As citações deixam transparecer a angústia dos meninos que vivem isolados na instituição, jurados de morte pelos demais. Os textos podem fazer sorrir pela vitória e recuperação de uns e chorar devido à dor do arrependimento de outros.

P.


P. não é mais um menino. Quem entrou pela porta de bermudas cinza, não as azuis do uniforme, era um homem com rosto forte e olhar triste. "P. é um garoto muito maduro", confirma Iliete. Não tem nenhum receio de falar o que sente, contar sua história. Relata como era sua vida, que crimes cometeu, sem rodeios. Simplesmente narra, com voz forme de quem sabe exatamente o que fez e que quer fazer daqui pra frente.

Com 19 anos, P. ainda é considerado adolescente por ter entrado no educandário com 17. Está quase saindo de lá. Só aguarda a decisão do juiz e, quando sair, vai ter o nome limpo para reconstruir sua vida. P. não quer mais roubar, não quer usar drogas: "Se eu voltar a me drogar, só tenho dois caminhos, a cadeia ou o caixão". Este tipo de declaração soa um pouco falsa da boca de outros garotos, parece frase feita para agradar a psicóloga e impressionar as meninas da PUC. Mas não é o que acontece com P. Ele é sincero.

P. é mais um daqueles meninos com aquelas histórias que a gente já ouviu várias vezes, mas não conhece de verdade. Era uma criança muito pobre, com pai e mãe alcoólatras, usava drogas desde pequeno... Mais um. Com 7 anos, na cidade de Jacarezinho, já cheirava cola. Depois, usou de tudo. Quando era adolescente, a mãe morava com outro homem. O padrasto batia na mãe e, adivinhe, P. resolveu pôr um fim nisso. 121 - homicídio. Foi para a Penitenciária de Santo Antônio da Platina, no Norte Pioneiro. Fugiu pelo teto e foi se esconder em São Paulo. Morava com um ladrão, e roubava para pagar o aluguel. 157 - assalto à mão armada. Foi para a Febem e, em seguida, transferido para Piraquara.

Diz que no Educandário São Francisco pode conversar, é ouvido quando precisa, ao contrário da Febem, onde "não podia nem olhar pro educador, só andava de capinha (cabeça) baixa". Quando chegou ao educandário, só pensava em se matar. Aora, conta os dias para sair. O tempo passa mais devagar.

Aqui fora, P. quer um emprego e uma família. Talvez, ir atrás da mãe. Enche os olhos de lágrimas quando conta que o irmão mais velho, seu companheiro de rua, foi assassinado. P. sabe quem foi, mas quer esquecer. Vai ficar longe de tudo isso, porque quer uma vida "normal".


A.


A. foi parar na ala D por causa de um jogo de futebol. Ele discutiu com alguns garotos e ganhou olhares nada amistosos. "Eu fiquei com medo, depois da discussão me senti ameaçado", conta. Com apenas três meses na instituição, não é o típico menino do educandário. Todo sábado, seus pais e avós passam pela desconfiada revista da segurança local para levar o gostinho do lar ao adolescente: são bolos, biscoitos e docinhos. Um mimo que nem todo mundo ganha.

A. cursava a oitava série, trabalhava como servente e fazia alguns bicos quando começou a praticar pequenos furtos. Os delitos foram crescendo à medida em que sua necessidade pedia: cada vez mais roupas de marca, mais sábados "curtindo o som".

Segundo a psicóloga Ilitete Galotti, trata-se de um menino ingênuo, em comparação com os demais. Alguém com boas chances de se recuperar e ser devolvido à sociedade. "Antes eu usava meu salário pra me divertir. Agora, quero ajudar minha mãe", diz o garoto.

D.M.


D.M. tem 16 anos. É um adolescente típico: alto, corpulento, levemente desajeitado e com cabelos cacheados. Parece tímido, mas talvez seja assim só com estranhos. Está no Educandário faz quase um ano. Antes de chegar à unidade de ressocialização de Piraquara, ele só havia estudado até a segunda série do ensino fundamental. Hoje, já cursa o segundo ciclo escolar, que equivale ao supletivo de 5ª a 8ª série.

A pouca escolaridade é característica comum entre os meninos: 68,15% não freqüentavam a escola antes da internação. Dos 31,85% que estudavam, apenas 1,4% concluiu o ensino médio. Segundo Iliete, psicóloga do Educandário, D.M. é um dos meninos mais inteligentes da instituição. Aprende fácil e é muito interessado.

Como complemento às atividades escolares, o garoto participa de oficinas no internato. Já teve aulas de emgregabilidade e de panificação. Futebol também faz parte da sua rotina. Mas o que mais tem auxiliado o garoto no processo de recuperação e inserção social é o acompanhamento psicológico. Iliete diz que muita coisa melhorou em D.M. desde que a sua medida socioeducativa começou a ser cumprida. "Antes ele era um menino difícil de lidar. Hoje, serve de exemplo para os outros", elogia a tutora. O garoto também reconhece os avanços. "Antes de entrar aqui, eu fazia muita coisa errada e não admitia meu erros. Agora já consigo".

O amadurecimento tem seu preço. D.M. teve que abandonar a família e o filho [sim, o adolescente é pai] que moram em Maringá. Por conta da distância e da falta de recursos, seus familiares só fazem visitas a cada três meses. Só viu o filho uma vez, quando a ex-namorada foi visitá-lo no instituto com o bebê.

Quando perguntado do que sente falta, o garoto respondeu sem rodeios: "Da família e da mulherada". Não deve ser fácil lidar com a saudade. Mas, apesar das dificuldades, D.M. faz planos: "Muita gente me ajudou e agora eu quero ajudar os outros. Eu quero fazer as coisas certas, tentar parar de roubar. Vou tentar não cometer os mesmos erros".

Ele vai sair do educandário com 18 anos. Terá passado quase três dos melhores anos de sua vida no isolamento da ala D. Do que vai precisar? De uma rede de apoio para não cometer crimes novamente.


* Texto de autoria de Juliana Fontoura, Fernanda Stica, Priscila Aguiar e Talita Fioravante publicado no Jornal Laboratório Comunicare "São só garotos" / Ano 11 / Número 126 / Maio 2007 / p. 8-9 / Editoria Especial / Orientação José Carlos Fernandes.