terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Os Meninos de Quatro Pinheiros

Chácara de Mandirituba abriga garotos que passaram pela dor do abandono e perigo das ruas


O petit pavé fazia a vez do colchão e um papelão úmido cobria o menino descalço e aos farrapos. A alimentação vinha da boca do lixo e a infância se ia como um mendigo que atravessa. Não foi fácil sentir na pele um mundo obscuro de abandono e tristeza. Mas, Fernando de Góis, ex-frade carmelita, passou por tudo isso e não deixou barato. Criou a Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros, em Mandirituba, onde 80 ex-meninos em situação de rua experimentaram a vida como ela deve ser. A casa é um modelo reconhecido internacionalmente e, ano passado, foi apontada pela Unesco como uma das 50 iniciativas latino-americanas mais importantes no atendimento à criança e adolescência.

A instituição é composta por cinco casas, nas quais os meninos vivem conforme a faixa etária e a maturidade. Antes de chegarem à instituição, as crianças são abordadas por integrantes dos conselhos tutelares e das varas de infância e juventude. Já na chácara são acompanhadas integralmente por uma equipe de 18 educadores. Os meninos estudam meio período e contam com um leque de atividades como informática, inglês, artesanato e hip-hop. Mas o que conta mesmo no processo de desenvolvimento é o empenho e o carinho dos educadores.

Um deles é José Carlos Gonçalves da Luz. Educador da quarta casa, ele atua diretamente junto a 17 pequenos de 6 a 12 anos."Eu trabalho há oito anos na chácara. Já fui menino de rua e estou retribuindo o que o Fernando fez por mim", diz. José é o pai de mentirinha da piazada. Ele faz o acompanhamento escolar, cuida dos horários das refeições, das tarefas, do banho e das brincadeiras.

Se José é o "paizão", quem faz o papel de mãe é a cozinheira Derli Cardoso, ou "tia Derli", como é conhecida entre as crianças. Ela é referência materna para J., um menino de 9 anos, magrinho e sorriso banguela. "Um dia ele pediu pra eu dormir aqui. Puxou as cobertas e disse pra eu deitar ao lado dele como a mãe fazia", diz. Dona Derli é catarinense e só de pensar em voltar para sua terra, deixando os meninos, enche os olhos de lágrimas.

Na casa dos guris, as histórias de vida são tão tristes quanto surpreendentes. São histórias como a de G., um menino de 12 anos cujo sonho é ser professor de dança. Morador da chácara desde 2004, G. é o único dos meninos que diz não gostar do lar onde vive. "Aqui tem muita briga", reclama.

No entanto, ele dá dicas de que a vida que tinha antes do abrigo não era nem de longe tranquila. "Eu e meus irmãos íamos escondidos pro Centro pedir esmola", revela. Quando perguntado sobre o pai, G. diz sem rodeios: "Está preso, bateu nos guardas". G. tem outros quatro irmãos na casa e a mãe posa com eles de vez em quando.

M. de 9 anos, quer ser eletricista. Monta radinhos e, segundo seu amigo R., quase explodiu a casa ao ligar uma fonte. Antes de ir morar na chácara, em janeiro de 2005, vivia com a tia, na Vila Torres, a ocupação mais antiga de Curitiba. Lá é mais favela, lá tem gente que fuma, tipo a minha mãe", conta o menino, com certa revolta. Mas de rebelde ele não tem nada: é daquelas crianças que despertam afeto instantâneo.

D. está com 13 anos e vive na casa desde 2003 Mesmo tão novo, já é um velho conhecido do abandono. Morou na rua por um ano, com um amigo. A família vive em Almirante Tamandaré e sobre seus pais parece saber pouco. Tem seis irmãos, sendo que o mais velho está atrás das grades. "Ele ficava roubando e prenderam ele", conta D. Seu sonho? Assim como 99% dos meninos da casa, quer ser jogador de futebol. O sonho, aliás, é o que fortalece a luta dos meninos de Quatro Pinheiros, meninos que, como quaisquer outros, também têm o direito de sonhar.

Nós também amamos a vida...

Para vocês a vida é bela
Para nós, favela
Para vocês, escola
Para nós pedir esmola
Para vocês carro do ano
Para nós resto de pano
Para vocês ir à lua
Para nós morar na rua
Para vocês Coca-Cola
Para nós cheirar cola
Para vocês avião
Para nós camburão
Para vocês academia
Para nós delegacia
Para vocês piscina
Para nós chacina
Para vocês apartamento
Para nós acampamento
Para vocês imobiliária
Para nós reforma agrária
Para vocês compaixão
Para nós organização
Para vocês tá bom felicidade
Para nós, igualdade.

(Poesia escrita pelos meninos da Chácara de Quatro Pinheiros.)



Filho que não foge à luta

Fernando de Góis não nasceu em berço de ouro. Seus pais eram humildes e sem terra. Na ocasião da boa nova, talvez de um anjo desses que tocam trombeta tenha anunciado: Vai, Fernando, fazer o bem! E foi o que ele fez. Sua trajetória teve início no Nordeste. Lá deparou-se com uma realidade assustadora - crianças subnutridas em pele e osso. Constatou que muitos brasileiros precisavam de ajuda.

De frade carmelita falador, virou um daqueles caras que levam o Evangelho às últimas conseqüências. Abandonou o conforto da Igreja, parou de criticar o governo e colocou a mão na massa. "Cheguei à conclusão de que eu poderia abraçar uma causa", diz.

No início dos anos 80, veio morar em Curitiba. Por opção, seu lar passou a ser a favela Vila Lindóia, na Zona Sul da capital. "Fui para essa favela para conviver com a violência, as drogas, os maus-tratos, com a fome e a miséria. Esta experiência foi uma grande escola", diz. Ele aprendeu a viver com o necessário e com o improviso. Seguidor do método Paulo Freire, conheceu a realidade da população e se propôs a construir um projeto de vida com ela.

A presença de Fernando de Góis transformou a Vila Lindóia em Comunidade Profeta Elias. O educador de rua - função que abraçou - delimitou sua área de atuação: crianças e adolescentes em situação de risco. "Se a gente investe na criança e no adolescente pode-se garantir um futuro pra eles. Só que para colher este futuro precisa semear o presente", ensina.

A comunidade começou a partir da reunião de crianças no contraturno escolar. Fernando e seus seguidores começaram a desenvolver atividades pedagógicas como o acompanhamento escolar, oficinas de música e aulas de teatro. Depois de oito anos de suor, a Comunidade Profeta Elias estava estruturada. Mas Fernando ainda não estava satisfeito. A nova missão era retirar os meninos da rua.

Ele e os demais educadores enfrentavam as madrugadas frias no Centro de Curitiba em busca de meninos. Era uma luta do bem contra o mal. "Na rua eu fui preso e ameaçado de morte. Contrariar o sistema incomoda as autoridades", admite. Fernando lembra que uma vez viu um policial quebrando o braço de um menino. Não pensou duas vezes: foi até a delegacia e denunciou. A esperança é pouca e os maus tratos são frequentes para os moradores de rua. Fernando conta que alguns meninos já foram queimados com água quente jogada pela janela dos prédios.

O trabalho feito na rua fez com que Fernando estabelecesse com os meninos um vínculo de muito diálogo. Numa conversa, eles decidiram que o melhor lugar para ficar não era na Comunidade Profeta Elias, mas em uma chácara. "Na leitura dos meninos era preciso um espaço em que eles pudessem resgatar as origens do campo, conviver com o meio ambiente e com os animais e ficar distante das drogas", lembra.

Em 1991, Fernando deu um jeito de realizar o desejo dos meninos. Conseguiu comprar uma chácara em Mandirituba e construiu quatro casas. Hoje ele realiza um trabalho de recuperação da dignidade e cidadania dos meninos.

Guerra dos Meninos

- Segundo dados da Fundação de Ação Social (FAS), dos 1028 moradores em situação de rua atendidos pela fundação, 273 têm entre 7 e 17 anos. Desses, 155 são de Curitiba, 85 da região metropolitana e 26 dos demais municípios. A maioria deles (154) têm entre 15 e 17 anos.

- Os meninos resgatados são encaminhados para a cidade de origem, onde são incluídos em programas de reintegração social. O maior problema, no entanto, é que grande parte dos resgatados retorna às ruas, muitas vezes em busca de drogas. O índice em relação uso de substâncias químicas é espantoso: 163 crianças confirmam o uso de drogas.

- A baixa escolaridade também é outro ponto crítico: 178 crianças têm o nível primário, 74 têm de 5ª à 8ª série, quatro possuem ensino médio e 15 são alfabetizadas.

- Quanto à situação familiar, a pesquisa constatou que 210 crianças e adolescentes de rua têm alguma referência familiar, enquanto 63 afirmaram não ter referências.

* Texto de autoria de Juliana Fontoura e Priscila Aguiar no Jornal Laboratório Comunicare Ano 11 / número 130 / Julho 2007 / Editoria: Infância e Adolescência. Orientação: José Carlos Fernandes.

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