segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Os meninos da ala D


Eles correm perigo, são protegidos e fazem planos pra depois de amanhã


O Educandário São Francisco tem um sistema de segurança que não difere da maioria dos presídios. Alguns alojamentos são tão escuros e sombrios quanto os modelos de cadeia mais comuns. Os meninos são separados por alas de acordo com a periculosidade do delito. As alas A e B são para os meninos considerados imaturos e que cometeram infrações menos graves.

Na C ficam os garotos que oferecem riscos aos demais pelo porte físico e distúrbios de personalidade. Quanto à ala D, há muito o que dizer: ali estão isolados os garotos jurados de morte, por terem cometido ou participado de infrações não toleradas nos sistemas prisionais em geral, como matricídio, abuso de menores e idosos, ou estupro. A turma da D vive na mira e os coordenadores da unidade que não podem descuidar dos internos um minuto.

Hoje, 20 meninos vivem sob proteção severa na ala D do São Francisco. Para conversar com eles, a equipe do Comunicare teve que fazer tripas coração. Foi preciso comprometimento, coragem e uma boa dose de diálogo com os técnicos do educandário. Acordo feito, três deles se sentaram com as repórteres e falaram sobre suas angústias, medos e principalmente do arrependimento por terem cometido delitos graves, muitos deles irreversíveis.

Os meninos da ala D são considerados perigosos, pois tiveram um contato desmedido com o crime organizado, o que costuma causar transtorno das unidades de ressocialização: as medidas educativas tendem a ser neutralizadas pelas investidas dos criminosos de carteirinha. Combater essas relações perigosas é um dos maiores desafios dos educadores.

Em paralelo ao flerte com o mundo do crime, boa parte desses garotos traz outro histórico - muitos nasceram em famílias desestruturadas e passaram a infância e parte da adolescência na rua. Alguns deles encontraram refúgio nas drogas; outros tinham como 'ganha pão' os assaltos à mão armada. Quase 70% dos 150 meninos do educandário não freqüentavam a escola antes da internação, portanto não tiveram um amadurecimento saudável e a construção de um repertório de valores.

A passagem dos adolescentes pela instituição pode ser uma oportunidade de recuperar a auto estima perdida no asfalto e lutar por uma vida digna. "Nós motivamos os meninos e fazemos com que eles descubram suas qualidades", diz Iliete S. Galloti, tutora e psicóloga responsável pela ala. O tratamento é uma combinação de muito diálogo, oficinas e orientação religiosa, com rigidez dosada por parte dos educadores.

D.M., menino de mãos grandes e surradas, diz que quando fica sabendo do crime do outro pode dar 'atropelo'. Ou seja, uma punição por desrespeitar as regras da cadeia. Ele conta que só descobriu que havia alguma coisa boa em sua personalidade quando 'caiu' na 'escola' (como eles se referem ao educandário). P.C., adolescente com jeito de homem e evidente timidez, lembra que quando chegou à instituição pensava em se matar. Depois das conversas com Iliete, sua cabeça foi mudando e ele pôde escolher entre estar num caixão ou ter uma vida digna.

Confira nesta reportagem fragmentos da conversa com os garotos da ala D. São três perfis que ajudam a conhecer a vida no educandário. As citações deixam transparecer a angústia dos meninos que vivem isolados na instituição, jurados de morte pelos demais. Os textos podem fazer sorrir pela vitória e recuperação de uns e chorar devido à dor do arrependimento de outros.

P.


P. não é mais um menino. Quem entrou pela porta de bermudas cinza, não as azuis do uniforme, era um homem com rosto forte e olhar triste. "P. é um garoto muito maduro", confirma Iliete. Não tem nenhum receio de falar o que sente, contar sua história. Relata como era sua vida, que crimes cometeu, sem rodeios. Simplesmente narra, com voz forme de quem sabe exatamente o que fez e que quer fazer daqui pra frente.

Com 19 anos, P. ainda é considerado adolescente por ter entrado no educandário com 17. Está quase saindo de lá. Só aguarda a decisão do juiz e, quando sair, vai ter o nome limpo para reconstruir sua vida. P. não quer mais roubar, não quer usar drogas: "Se eu voltar a me drogar, só tenho dois caminhos, a cadeia ou o caixão". Este tipo de declaração soa um pouco falsa da boca de outros garotos, parece frase feita para agradar a psicóloga e impressionar as meninas da PUC. Mas não é o que acontece com P. Ele é sincero.

P. é mais um daqueles meninos com aquelas histórias que a gente já ouviu várias vezes, mas não conhece de verdade. Era uma criança muito pobre, com pai e mãe alcoólatras, usava drogas desde pequeno... Mais um. Com 7 anos, na cidade de Jacarezinho, já cheirava cola. Depois, usou de tudo. Quando era adolescente, a mãe morava com outro homem. O padrasto batia na mãe e, adivinhe, P. resolveu pôr um fim nisso. 121 - homicídio. Foi para a Penitenciária de Santo Antônio da Platina, no Norte Pioneiro. Fugiu pelo teto e foi se esconder em São Paulo. Morava com um ladrão, e roubava para pagar o aluguel. 157 - assalto à mão armada. Foi para a Febem e, em seguida, transferido para Piraquara.

Diz que no Educandário São Francisco pode conversar, é ouvido quando precisa, ao contrário da Febem, onde "não podia nem olhar pro educador, só andava de capinha (cabeça) baixa". Quando chegou ao educandário, só pensava em se matar. Aora, conta os dias para sair. O tempo passa mais devagar.

Aqui fora, P. quer um emprego e uma família. Talvez, ir atrás da mãe. Enche os olhos de lágrimas quando conta que o irmão mais velho, seu companheiro de rua, foi assassinado. P. sabe quem foi, mas quer esquecer. Vai ficar longe de tudo isso, porque quer uma vida "normal".


A.


A. foi parar na ala D por causa de um jogo de futebol. Ele discutiu com alguns garotos e ganhou olhares nada amistosos. "Eu fiquei com medo, depois da discussão me senti ameaçado", conta. Com apenas três meses na instituição, não é o típico menino do educandário. Todo sábado, seus pais e avós passam pela desconfiada revista da segurança local para levar o gostinho do lar ao adolescente: são bolos, biscoitos e docinhos. Um mimo que nem todo mundo ganha.

A. cursava a oitava série, trabalhava como servente e fazia alguns bicos quando começou a praticar pequenos furtos. Os delitos foram crescendo à medida em que sua necessidade pedia: cada vez mais roupas de marca, mais sábados "curtindo o som".

Segundo a psicóloga Ilitete Galotti, trata-se de um menino ingênuo, em comparação com os demais. Alguém com boas chances de se recuperar e ser devolvido à sociedade. "Antes eu usava meu salário pra me divertir. Agora, quero ajudar minha mãe", diz o garoto.

D.M.


D.M. tem 16 anos. É um adolescente típico: alto, corpulento, levemente desajeitado e com cabelos cacheados. Parece tímido, mas talvez seja assim só com estranhos. Está no Educandário faz quase um ano. Antes de chegar à unidade de ressocialização de Piraquara, ele só havia estudado até a segunda série do ensino fundamental. Hoje, já cursa o segundo ciclo escolar, que equivale ao supletivo de 5ª a 8ª série.

A pouca escolaridade é característica comum entre os meninos: 68,15% não freqüentavam a escola antes da internação. Dos 31,85% que estudavam, apenas 1,4% concluiu o ensino médio. Segundo Iliete, psicóloga do Educandário, D.M. é um dos meninos mais inteligentes da instituição. Aprende fácil e é muito interessado.

Como complemento às atividades escolares, o garoto participa de oficinas no internato. Já teve aulas de emgregabilidade e de panificação. Futebol também faz parte da sua rotina. Mas o que mais tem auxiliado o garoto no processo de recuperação e inserção social é o acompanhamento psicológico. Iliete diz que muita coisa melhorou em D.M. desde que a sua medida socioeducativa começou a ser cumprida. "Antes ele era um menino difícil de lidar. Hoje, serve de exemplo para os outros", elogia a tutora. O garoto também reconhece os avanços. "Antes de entrar aqui, eu fazia muita coisa errada e não admitia meu erros. Agora já consigo".

O amadurecimento tem seu preço. D.M. teve que abandonar a família e o filho [sim, o adolescente é pai] que moram em Maringá. Por conta da distância e da falta de recursos, seus familiares só fazem visitas a cada três meses. Só viu o filho uma vez, quando a ex-namorada foi visitá-lo no instituto com o bebê.

Quando perguntado do que sente falta, o garoto respondeu sem rodeios: "Da família e da mulherada". Não deve ser fácil lidar com a saudade. Mas, apesar das dificuldades, D.M. faz planos: "Muita gente me ajudou e agora eu quero ajudar os outros. Eu quero fazer as coisas certas, tentar parar de roubar. Vou tentar não cometer os mesmos erros".

Ele vai sair do educandário com 18 anos. Terá passado quase três dos melhores anos de sua vida no isolamento da ala D. Do que vai precisar? De uma rede de apoio para não cometer crimes novamente.


* Texto de autoria de Juliana Fontoura, Fernanda Stica, Priscila Aguiar e Talita Fioravante publicado no Jornal Laboratório Comunicare "São só garotos" / Ano 11 / Número 126 / Maio 2007 / p. 8-9 / Editoria Especial / Orientação José Carlos Fernandes.

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